Steirereck, cozinha Michelin em cera quente de abelhas
O que se come no melhor restaurante de Viena? Truta cozinhada em cera quente de abelhas, carrinhos de comida a transbordar originalidade, minimalismo decorativo, respeito pelo produto local e recuperação de espécies endémicas esquecidas, são algumas das razões que tornam o Steirereck num dos melhores restaurantes do mundo. O Avenida Chique foi lá jantar e conta-lhe, por aqui, todos os detalhes...
Truta cozinhada em Cera Quente de Abelhas, (Foto: Steirereck)
Durante a nossa última viagem a Viena, para além das especialidades gastronómicas nos restaurantes tradicionais ou das delícias pasteleiras nos cafés da cidade, queríamos viver uma experiência de alta-gastronomia. A procura na Internet e em revistas da especialidade conduziu-nos de forma indiscutível ao restaurante Steirereck. É ali, numa cozinha com mais de 50 cozinheiros e ajudantes que o Chef Heinz Reitbauer afina a fundação da nova cozinha austríaca.
Currículo Impressionante
O Steirereck é atualmente um dos melhores restaurantes do mundo, com vários prémios de gastronomia incluindo as duas estrelas Michelin e os quatro Toques da Gault Millau. No ano passado (2016) Chef Heinz Reitbauer foi nomeado “Chef do Milénio” pela guia Gault Millau e desde 2009 que o Steirereck figura na prestigiosa lista de “50 Melhor Restaurantes do Mundo” (World’s 50Best Restaurants).
O restaurante fica localizado no Parque da Cidade de Viena (Stadtpark) num edifício moderno e minimalista onde prima a madeira, o aço e o vidro. Quando a porta do carro se abriu e vi pela primeira vez o Steirereck pensei, por instantes, que estava no Parque Eduardo Séptimo, em Lisboa à porta do Eleven. A nível de arquitetura e contexto vegetal são muito parecidos.
À chegada, e porque todo o restaurante é transparente, conseguimos deslumbrar a atarefada cozinha e as diferentes salas com iluminação indireta. As mesas estão postas com simplicidade, toalhas de linho engomado e um pequeno jarro com singelas flores silvestre. Há um silêncio sepulcral no restaurante, uma espécie de vénia à arte apresentada em prato, mas na cozinha os tachos e panelas são ritmados ao som de soul e blues.
Eu estava muito ansiosa com esta visita ao Steirereck, afinal a Áustria deu-nos dois dos únicos cinco chefs reconhecidos em Portugal com duas estrelas Michelin: Dieter Koshina (Vila Joya) e Hans Neuner (Ocean – Vila Vita Parc). Por isso, tinha curiosidade em saber se a alta gastronomia praticada atualmente em Viena se diferencia muito em técnicas, produtos, conceitos ou empratamentos da praticada no nosso país.
Lamento que as minhas fotografias tenham ficado extremamente escuras, mas a atmosfera do restaurante tem as luzes muito baixas e mesmo trabalhando com foco fotográfico, as imagens não fazem justiça à beleza dos empratamentos.
Recuperação de espécias endémicas e produtos em cru
A cozinha do Chef Reitbauer baseia-se num respeito e preferência pelo produto local utilizado em cru. Esta identidade gastronómica que lhe valeu a apreciação dos críticos internacionais, assenta nas raízes dos estilos nacional e regional da cozinha austríaca. A escola de Reitbauer consiste, essencialmente, na criação meticulosa de momentos surpresa durante o jantar, através da descoberta de ingredientes raros ou que ficaram esquecidos nos véus do tempo. Uma das razões para o sucesso do Chef Reitbauer é a cuidada rede de amigos agricultores, botânicos, jardineiros e entusiastas da gastronomia que lhe fornecem constante inspiração e motivação.
Não elegemos o menu de degustação composto por 9 momentos diferenciados, preferindo escolher à la carte. O Sommelier trouxe-nos um livro pesado com as referências da recheada garrafeira, mas deixámo-nos aconselhar com um vinho branco mineral do país. Provámos um Riesling de Viesslinger Bruck de Veyder-Malberg, 2015 e ainda um Riesling Prager de Ried Steinriegl, 2016, ambos da região de Wachau.
Uma vez escolhidos os pratos, o empregado de mesa decorou a nossa toalha de linho com pratos e pratinhos repletos de bondades da cozinha. Os amuse-bouche do Chef Reitbauer revelaram-se uma boa surpresa quer em sabor, como em apresentação. No entanto, embora não queira fazer comparações, as pequenas entradas com que nos presenteiam no Vila Joya e no Ocean, são de outro gabarito.
A extravagância do pão
Depois das pequenas entradas, veio uma das surpresas de Reitbauer, os famosos carros do Steirereck. Um empregado com luva branca trouxe um carro de pão, com diferentes variedades, formas e feitios que parecia uma padaria ambulante. O pão na Áustria é extraordinariamente delicioso, com texturas fortes, mistura de sementes e fermentos, crostas grossas e massa tenra. Alguns fazem lembrar em aparência e textura, as broas e os pães saloios das nossas Beiras e também são cozinhados em forno de lenha. No Steirereck não elaboram o pão, mas recebem diariamente um fornecimento exclusivo de 9 padaria austríacas.
Cartões de Apresentação
Depois, antevendo a chegada dos pratos pedidos, trouxeram um mini suporte de madeira com uma ranhura onde ia colocando cartões com uma introdução e apresentação do conteúdo das iguarias.
O primeiro cartão fez a apresentação da escola e cultura gastronómica de Viena.
Ao longo dos séculos a Áustria tem vindo a desenvolver a sua própria identidade culinária. A cozinha austríaca embora esteja associada de forma indissociável à monarquia, recebeu influências das diferentes regiões e países que formaram parte do Império Austríaco. Esta mistura eclética de culturas, raças, povos e ingredientes tornam a gastronomia da Áustria num património diverso e rico. No Steirereck resgatam alguns desses sabores, produtos e formas de preparação que remontam aos diferentes cantos do Império, numa viagem sensorial pela aclamada escola culinária vienesa. A gastronomia de Viena é uma das únicas do mundo que recebe a designação a partir de uma cidade. Há duzentos anos, durante o Congresso “Wiener” decidiu-se classificar esta cultura gastronómica, onde as diferentes heranças culinárias dos cantões do Império convivem em harmonia.
Peixe cozido em Cera de Abelha
No capítulo das entradas, degustámos a famosa “Truta com cera de Abelhas, Cenoura amarela, Pólen e Nata azeda”. A truta da variedade “Mariazeller” foi cozinhada à mesa com uma técnica espantosa. O empregado colocou o filete do peixe no centro de um tabuleiro de madeira e verteu-lhe por cima cera de abelhas quente. Para nosso espanto, a cera ao endurecer cozinha o filete a baixa temperatura.
A truta veio acompanhada com cenoura amarela marinada e cozida al dente, gelatina de cenoura, sumo de maçã em infusão de cera de abelha, nata azeda com pimenta Caiena, lima, caviar de truta e falso pólen de vinagre e um toque de manjericão. Os sabores descomplicados, conquistam, precisamente, pela sua simplicidade e elegância.
Ainda de entrada provámos a “Truta de Montanga com Melão, Pepino e Brotos estiolados de Ervilha”. A truta de Montanga é uma variedade de peixe esquecida e recuperada por Chef Reitbauer, com uma carne firme e consistente. Este tipo de truta selvagem dos rios austríacos guarda a gordura de forma uniforme por todo o corpo, resultando num filete com consistência mas que se derrete em boca. A truta veio em cru, acompanhada de melão com bálsamo de limão, diferentes pickles de pepino em vinagre e ginger-ale, pasta de alface com azeite de basílico, mel de acácia e pimenta Caiena, brotos de mungo fermentados e brotes estiolados de ervilha. Se se está a perguntar o que significa estiolado, tratam-se de brotos geminados ao escuro que crescem rapidamente. Esta composição tem valor enquanto performance de recuperação de uma variedade piscícola que caiu em desuso, mas, a nível de sabor pessoalmente encontrei-a um pouco insípida.
Truta de Montanga com Melão, Pepino e Brotos estiolados de Ervilha, (Foto: Steirereck)
O melhor prato de carne da minha vida
Como prato principal, escolhemos a mesma composição, a “Perna de vitela de leite com Tubérculos dourados, Ervilhas e Cebola branca”. O tenríssimo pedaço de vitela foi primeiro marinado em leite ácido, ajowan (uma erva aromática entre a salsa e o tomilho), limonete, menta e depois estufado. No prato vem disposto com cogumelo de montanha em pickle enrolado com chili e cebola branca, cebola estufada com limão Meyer, ervilhas salteadas com couve pack-choi, nozes pecan, cogumelos Portobello e chupetinhos, tubérculos dourados com verjus (sumo de uva verde) e flor de montanha silvestre. Esta foi a iguaria que mais me surpreendeu do Steirereck e votaria nela como um dos melhores pratos de carne que provei na minha vida (até agora).
Perna de vitela de leite com Tubérculos dourados, Ervilhas e Cebola branca, (Foto: Steirereck)
Extravagância de queijos
Com o menu das sobremesas, um empregado de mesa trouxe-nos um esplendoroso carrinho de queijos. Nunca vi tanta variedade junta e os meus olhos não sabiam onde parar, dada a diversidade de tamanhos, perfumes, sabores e texturas. Embora nos sentíssemos tentados a mergulhar nessa orgia de queijos, fizemos uma opção sensata e ficámos apenas pelo pedido de sobremesas. (Agora, à distância lamento ter resistido à indulgência láctea, mas a minha gula tem que ser controlada...)
Sobremesas sem doce
Provámos o “Pêssego com groselha, Amêndoa, Limão, Agastache” pêssegos grelhados e em conserva, amêndoas verdes e caramelizadas, agastache de limão (a agastache é uma flor asiática comestível), sorbet de amêndoa e calpis (bebida de leite fermentada japonesa com toque ácido), molho de groselha vermelha com amoras desidratadas e groselha negra.
E deliciámo-nos com o “Soufflé de sementes de girassol, Cerejas, Verbena e gelado de Leite Ácido”. O soufflê veio a fumegar numa forma em barro e desenformado na mesa. Acompanhavam-lhe umas cerejas gordas descaroçadas, toques de verbena argentina, creme de sementes de girassol, laranjas caramelizadas, sorbet de leite ácido, leite de chocolate e baunilha.
Pêssego com groselha, Amêndoa, Limão, Agastache e Soufflé de sementes de girassol, Cerejas, Verbena.
Carro com colmeia de mel e... abelhas
As sobremesas surpreenderam-me por serem quase uma composição vegetal e frutal com um toque mínimo de doce. Mas acredito que não são sobremesas fáceis para quem é guloso, porque vai ficar com a desejo de comer algo doce... Talvez para colmatar essa silenciosa ansiedade, o empregado de mesa apareceu com um novo carrinho, uma palete de colmeias com rodas. Para nosso espanto ao abrirem a alça ouve-se o zumbido ensurdecedor das abelhas e retiraram um quadro de cera a escorrer mel. Felizmente (tenho pânico a abelhas) o ruído era apenas um som pré-gravado e a caixa oferecia ainda, vários tipo de mel, falso pólen elaborado chocolate branco, baklavas e uns pequenos marshmallows de mel. Ora se as sobremesas foram intencionalmente pouco doces, estes petit-fours de mel romperam a escala da gulodice. O café e o chá vieram acompanhados com troços de laranjas cristalizadas provenientes da Orangerie no Palácio de Schönbrunn.
Tábua de mel, carro com colmeia, cafés com laranjas caramelizadas da Orangerie de Shönbrunn
Chef Heins Reitbauer (Foto: Steirereck)
Embora eu tenha tido alguma dificuldade com os sabores da truta de montanga que me pareceu insípida e a falta de doçura das sobremesas, em geral, esta experiência gastronómica foi um dos jantares mais memoráveis na minha vida. Porém, a nível de gosto, creio que tenho ainda pela frente um trabalho de crescimento pessoal para poder apreciar, sem preconceitos, as sobremesas que sejam pouco (ou nada) doces. Não devemos esquecer que no sistema de valores portugueses, herdados da gulosa doçaria conventual, espera que uma sobremesa seja sempre doce, admitindo como muito, a perversidade da combinação doce e salgada. Ora, o Chef Reitbauer convida-nos a desconstruir os nossos preconceitos e abrir os nossos horizontes a novas criações...
O preço de uma refeição para duas pessoas é acessível a partir de 260 euros.
Para mais informação e reservas, por favor, consulte:
Restaurante Steirereck em Viena
Direção: Am Heumarkt 2A, In Stadtpark A – 1030 Wien
Telefone: (+43) 1 713 31 68
Página Web: https://www.steirereck.at
Fotos: Avenida Chique e Steirereck
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