Hans Neuner. A reformulação da gastronomia portuguesa.
A alma é a austríaca, mas o coração já bate em compasso lusitano. Hans Neuner, um dos grandes da nossa gastronomia, está mais Português que nunca. O novo menu sazonal do Ocean, o restaurante gourmet do Vila Vita Parc, surpreende pelo elevado grau de "portugalidade".
O génio criativo deste chef de duas estrelas Michelin, conseguiu captar os sabores mais genuínos da nossa tradição, desconstruí-los e voltar a apresentá-los com um novo formato. Há sardinhas de Bordallo Pinheiro, feijoada, chouriço, couve galega, caldo do cozido, frango piri-piri, carne de porco, algodão-doce, ovos moles, mas não na forma como você e eu conhecemos ou esperamos. Os sabores, os perfumes e as memórias estão todos lá, mas a estrutura é inovadora, uma surpresa constante, um regalo para o olhar, o sentir e o degustar.
Vasco Célio /Stills
Dizem que alguma gastronomia é arte, pois bem-vindo à casa do artista. Entrei no Ocean faltava ainda uma hora para a abertura ao público. Os empregados andavam em torvelinho a ultimar as mesas, a verificar a pulcritude dos copos de cristal e a polir os pratos com vodka. Na cozinha ferviam, a lume brando, cerca de 15 cozinheiros atarefados com a mise-en-place.
Neste momento de backstage descontraído, a formalidade do restaurante está desligada e, ao invés, ouvem-se bem alto as guitarras elétricas dos AC/DC. A equipa jovem conversa animadamente enquanto preparam os últimos detalhes do espetáculo de esta noite.
De esta e de todas as noites: alta-gastronomia aclamada pelos grandes críticos e premiada pelos guias gastronómicos internacionais. O Ocean recebeu duas estrelas Michelin em 2011 entrando para a cúspide, o reino dos deuses da gastronomia lusa contemporânea. Atualmente só há mais quatro chefs em Portugal com essa distinção: Dieter Koshina do Vila Joya (Algarve), José Avillez do Belcanto (Lisboa), Ricardo Costa, The Yeatman (Porto) e Benoît Sinthon, Il Gallo d'Oro (Funchal, Madeira)
Enquanto espero por Hans Neuner, o chef austríaco com fama de enfant-terrible, entretenho-me a tirar algumas fotografias e videos à nova decoração do Ocean. O azul marinho da parede, a incrível coleção de corais africanos e a iluminação em forma de bolhas etéreas leva a imaginação a pensar que estamos no fundo do mar, talvez na cova encantada da A Menina do Mar de Sophia de Mello Breiner.
Absorta nos meus pensamentos e com o olhar perdido no horizonte azul atlântico e nas formas da falésia algarvia não me dou conta da chegada de Hans. Vem, jovial, com um casaco de ganga por cima do seu uniforme com o nome bordado. Com uma simplicidade assombrosa, o que é hoje senão o melhor, ou um dos melhores chefs em Portugal, senta-se comigo numa mesa disposto a ser entrevistado.
Primeiro pomo-nos de acordo com o idioma, pois temo que o meu alemão não seja suficiente para compreender as nuances escondidas no acento austríaco. Hans escolhe fazer a entrevista em inglês, mas ao longo das respostas vai variando com simpatia entre o alemão e o português. Faço-lhes as perguntas que levo preparadas mas o tempo é curto para estendermos a conversa por muito tempo. Às sete, Hans tem que estar na cozinha ao timão de uma equipa de 25 pessoas para que a magia possa acontecer. [para ler a entrevista clique aqui]
O Chef Hans Neuner, em momento de descontração na sua cozinha
Volto às 20:30 em salto-alto, batom vermelho e macacão de seda azul. Vesti-me para a ocasião para desfrutar da formalidade do fine dining do Ocean. As guitarras dos AC/DC foram substituídas por acordes clássicos. As mesas estão todas ocupadas, os homens em fato escuro e as mulheres destilando elegância e perfume francês. O pôr-do-sol empresta uma paleta de cores pastéis ao horizonte marinho. No Ocean, as grandes janelas abertas ao Atlântico oferecem uma paisagem de cortar a respiração.
Sardinha pop-art, Frango pós-moderno e a Ostra-porno
A Sardinha. As criações de Hans saltam desse cenário marinho e materializam-se no nosso prato. A sardinha é a primeira das entradas. Uma porcelana da safra de Rafael Bordallo Pinheiro pintada com motivos pop-art recebe o comensal. Os sabores neste prato são uma bofetada de "portugalidade" que apanha o incauto de surpresa. E os genuínos paladares da nossa terra estão todos lá. O mimo consiste num mini taco de couve desidratada recheada de chouriço, uma chávena em cimento industrial com um saboroso caldo de cozido à portuguesa com flores e couves bebé. Em cima da sardinha de porcelana encontramos um crocante de patê de sardinha algarvia.
Sardinha de Bordallo Pinheiro reinventada. Avenida Chique
O Frango. A surpresa seguinte é já um dos pratos assinaturas de Hans Neuner, a sua genial interpretação do típico "frango piri-piri da Guia" e se me permitem a liberdade da escrita, o frango pós-moderno. Apresenta-se uma mini-sanduíche de pele de frango estaladiça recheada de frango; um envelope com mini-chips de batata e pele de frango com ketchup de piri-piri e uma salada de tomate datarini em formato espuma e com essências de manjericão e ervas aromáticas. Curiosa é água de tomate que escorre livre pelo prato de porcelana elaborada, especialmente por um artista polaco, para o Ocean. Nesta criação encontra-se o difícil equilíbrio entre o tradicional e a modernidade, a gordura e a leveza, o concentrado de sabores do frango e do piri-piri e a frescura da salada. Arte pura. A essência dos verões algarvios, as comidas em famílias, a felicidade no prato.
Frango Piri-piri. Criação de Hans Neuner para o Ocean. Avenida Chique
A Ostra. Ainda no capítulo das entradas veio uma composição de ostras. Antes de descrever os elementos que compõem este prato devo advertir que é o meu favorito. A escolha de sabores eleva a genialidade de Hans a outro nível. Mas não pense que é um prato de sabores fáceis, ao contrário. Está feito para palatos treinados e viajados, para surpreender aquele que já provou de tudo e em qualquer parte do mundo e não se assombra com quase nada. Este é um prato de sabores adultos, complexos, e se a etiqueta de food-porn não estivesse tão gasta, serviria como uma luva, para o descrever.
Acompanhado com o espumante Ninfa 2014 (Tejo, pinot noir branco), a beleza feminina do prato salta aos olhos. Sob um tapete de flores de gerânio paira um coral de Ananás dos Açores e pimenta negra. Por baixo encontra-se, húmida, uma nuvem de foie-gras liofilizada e o miolo de ostras da Ria Formosa. Adiciona-se já em mesa, um creme de ostras com toque agridoce. Sensualidade gastronómica em todo o seu esplendor.
Ostras com duas estrelas Michelin. Avenida Chique
O Pão. Depois destes três postais de sabores, faz-se um intervalo com fatias grossas de pão rústico alentejano servido em caixa de cristal e umas delicadas esferas de manteiga clarificada de cabra. Não sei se se lembram, mas na minha primeira visita ao Ocean dediquei um salmo a estas pequenas joias... são tão bonitas que até dá pena degustá-las. Mas o pão fofo de cevada do pasteleiro Márcio Baltazar é uma perdição e leva-nos a crimes inconfessáveis... como a devorar as belas esferas de manteiga.
Arte? Esferas de Manteiga by Hans Neuner. Vasco Célio / Stills
A Gamba. A composição da “gamba rosa da Ria Formosa” entra em cena arrancando-nos o olhar contemplativo da linha azul do Oceano Atlântico e obrigando-nos a fixar nas linhas sensuais marinhas deste prato, onde a componente estética compete com o sabor.
Quase a lembrar um quadro de Miró, encontramos um falso tagliatelle de lula e daicón - um rabanete branco japonês - esferas de Yuzu, cítrico japonês produzido no Alentejo, um dumpling de gamba, gengibre e limão. Na mesa, o maître refresca a gamba com sumo de maçã fresca, que dota a composição de uma frescura inusitada.
Gamba rosa da Ria Formosa Vasco Célio / Stills
O Salmonete. Seguem-se dois pratos, um de peixe e um de carne, onde o dois estrelas Michelin e a sua equipa mostram que não há produtos ou matérias primas que não saibam trabalhar à perfeição. Primeiro, um Salmonete de Sagres com Feijoada e Batata-Doce, harmonizado com um Casal de Santa Maria, Pinot Noir, da região de Lisboa. A feijoada servida com o salmonete é elaborada com feijão-frade crocante, pleno de sabor mas com uma delicadeza assombrosa. Só mesmo o engenho do austríaco é capaz de ir ao receituário português mais tradicional e reformulá-lo desta forma.
A Pluma. Depois seguiu-se uma tenríssima Pluma de Porco Preto com Maçã Verde, flor de Grelos, toque de mostarda e dumpling de fermento, cujos sabores foram potenciados com um Mãos, 2011, Signature Rafael Miranda da região nortenha do Douro.
Salmonete de Sagres, Feijoada e Batata Doce Avenida Chique
Pluma de Porco, Maçã Verde, Grelos, Mostarda, Fermento Avenida Chique
Sobremesas. O concerto das sobremesas veio servido a três tempos: primeiro, uma taça de "Pipocas, Morangos Costa Vicentina e Limão". Surgiram, depois os pós-modernos "Ovos Moles de Aveiro, Gema de Ovo, Laranja" e finalmente, uma composição de "Chocolate Maracaibo 65% com Avelã e Kumquat". As sobremesas foram acompanhadas com um fortificado madeirense, o conhecido Barbeito Malvasia, 10 anos.
As primeiras duas sobremesas são dignas de uma constelação de estrelas Michelin. Em especial a primeira, que envolve técnicas avançadas de pastelaria e ousadez na combinação dos sabores doce e salgado. Gosto de sobremesas deste tipo, em que o doce compete com outras nuances e desequilibra as expetativas clássicas dos comensais.
A genialidade de Hans Neuner encontrou o par perfeito na extravagância técnica do chefe de pastelaria, Márcio Baltazar. A criação das pipocas é também didática e envolve, quem a desgusta, numa caça à pipoca verdadeira... todas as outras são criações de merengue que enganam o olho e a língua... A frescura dos morangos da Costa Vicentina em combinação com o doce-salgado das pipocas é uma combinação vencedora.
Ainda não refeita da performance (quase) artística da primeira sobremesa, eis que todos os meus sentidos são surpreendidos com a segunda. Imagine uma porcelana em formato de nuvem atravessada com raios dourados. Sobre esta escultura vinha uma porção de júbilo infantil: algodão doce... recheado com ovos moles de Aveiro, com um toque de zest de pomelo e laranja. Ao saborear esta sobremesa surgiram, nos meus olhos, lágrimas antigas. Memórias da minha infância, de alguma noite em que passeava com o meu pai pela Feira Popular... Gastronomia é isto, meus senhores. O estranho equilíbrio entre os sabores, as memórias e os sentimentos.
A terceira sobremesa (de chocolate) é uma aposta mais clássica mas que acaba - na minha opinião - por perder o brilho próprio, se servida depois das duas genialidades anteriores. No entanto, e porque o trabalho dos patissiers nos merece todo o respeito, aqui vai a descrição. Estamos perante um bolinho de tipo financier de chocolate com sorbet de chocolate, coulis de manga e sorbet de kumquat - pequeno citrino- que agradará a todos.
Pipocas, Morangos Costa Vicentina e Limão Vasco Célio / Stills
Vasco Célio / Stills
Para mais informação ou reservas, consulte o website do Restaurante Ocean.
Direção: Rua Anneliese Pohl, Alporchinhos
Porches, Algarve
Telefone: + 351 282 310 100 Email: reservas@vilavitaparc.com
Horário: De Quarta a Domingo – só jantares - 20:00 to 23:00
Informações Adicionais:
■ Aconselha-se Reserva; ■ Etiqueta: Elegante; ■ Crianças a partir dos 12 anos
■ Preço por pessoa 135 euros (valor orientativo)
Créditos Fotográficos: Avenida Chique | Vila Vita Parc | Vasco Célio - Stills
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