E que tal uma viagem gastronómica ao tempo de Cristóvão Colombo?
Hoje cruzamos a fronteira até Huelva, mais precisamente ao restaurante Acanthum do chef Xanty Elías, para provar o menu "525 sinergias", uma viagem gourmet com mais de 500 anos a bordo da histórica Caravela "A Pinta".
Xanty Elías, o primeiro chef a conquistar uma estrela Michelin para Huelva
Aqui no Avenida Chique já nos cruzámos com o chef espanhol no evento gastronómico da Fine Wines and Food Fair 2017 do Vila Vita Parc, mas não há nada como ir à casa do chef para perceber o que se coze nos seus tachos e panelas.
A viagem até ao laboratório de experiências de Santiago Elías, conhecido por Xanty e galardoado com uma estrela Michelin, revelou-se uma enorme surpresa. Sem sair da mesa, acompanhei o percurso de marinheiros e conquistadores espanhóis até às Américas, enjoei com as marés e alegrei-me com a chegada ao Novo Mundo. Uma viagem figurada, mas cheia de sensações.
Interior do restaurante Acanthum em Huelva
O menu intitula-se "525 sinergias" e pretende ser uma comemoração do encontro de dois mundos, Europa e América. O preço por pessoa é de 72 euros e inclui 12 momentos sibaritas. Pode-se pedir uma harmonização de vinhos adicionando 32 euros por comensal. Esta proposta gastronómica é muito mais que uma travessia de sabores e culturas, estamos perante uma performance muito original e diferente que alia história, ficção, arte dramática e show-cooking.
Uma viagem através do tempo
Hoje, a arte da gastronomia também envolve contar histórias, resgatar lendas ou narrar peripécias humanas através dos sabores. Elías lembrou-se de criar um menu que revisita as travessias de Cristóvão Colombo e da sua tripulação de Huelva até às Américas.
Todas as boas histórias têm um narrador participante e esta não é exceção. Neste caso, a travessia é-nos contada a partir da perspetiva de Juan Quadrado, um cozinheiro ficcional que trabalhava na cozinha da Caravela de Cristóvão Colombo. Juan Quadrado está para Xaby Elías como António Caeiro ou Álvaro Campos estavam para Fernando Pessoa. Estamos perante um heterónimo com vida própria, cuja existência não é discutida ou questionada por ninguém. Neste restaurante entramos, sem saber, no espaço suspenso da credibilidade ficcional, e aceitamos que seja o tal cozinheiro quinhentista a preparar-nos o jantar.
Os dilemas e criações de Juan Quadrado são-nos apresentados pelos empregados de mesa com discursos pomposos e salamaleques teatrais. A epopeia marítima vem doseada em diferentes capítulos, numa performance encenada ao milímetro, que introduz e explica o como e o porquê dos pratos.
E embora as palavras nunca consigam pintar as paisagens gastronómicas com total veracidade, eis que passo a descrever-vos a história e a performance de cada prato:
A história dos sabores, começa de forma humilde em Palos de la Frontera, uma povoação marítima a poucos quilómetros de Huelva. A primeira saudação de cozinha é um "Pan Bao Genovesa - Hallulla con Sardinas Embarricás", ou seja, um pãozinho com molho pesto e um envelope crocante com patê de sardinhas servidos sobre um seixo do rio. Influências humildes e onumbenses (assim se chama às pessoas e aos produtos da região de Huelva) para celebrar a partida do porto.
Já embarcados em alto-mar, os dias passam muito lentamente. Juan Quadrado começa a pensar como misturar os produtos que ainda tem frescos no barco, com as especiarias trazidas da Índia. E desta cogitação nasce o "Choco, Almeja y Curry", um prato elaborado à base de espuma de caril com miolo de amêijoas e choco. Gostei muito desta composição e agora que escrevo este post, recordo com grandes saudades as delicadas essências marinas captadas nesta receita.
"Choco - Almeja - Curry" composição maestra por Xanty Elías
À medida que a viagem atlântica vai avançando, as refeições dos marinheiros passam a ser elaboradas com os mantimentos guardados no porão e a pesca diária. "Caballa - Altramuces -Alcaparra" é o prato que combina os sabores da cavala (um dos peixes mais comuns na pesca a bordo) com alcaparras em pickle e tremoços. A humildade dos ingredientes não restou, de maneira alguma, sabor à excelente composição.
"Caballa - Altramuces -Alcaparra"
Passadas várias semanas em alto-mar, eis que os nossos marinheiros vislumbram o horizonte das Américas. Rodrigo de Triana, do alto do mastro da caravela grita a todo pulmão: Terra à vista! E para celebrar essa chegada, Juan heterónimo do chef Xanty Elías, apresenta-nos um prato "Sherry - Cherry" inspirado nos diferentes vinhos andaluzes bebidos durante a feliz ocasião. O jogo de palavras desvenda-se com a chegada do prato, composto por tomatinhos “cherry” marinados com diferentes vinhos “sherry”.
"cherry - sherry"
A chegada às Américas foi motivo para Juan Quadrado usar as carnes guardadas em sal moura e adorná-las com frutos secos. De aí nasce o "Piñón - Ibérico - Verdial", um primoroso carpaccio de carne de porco curada, com pinhões tostados e caracóis, uma das combinações que mais me agradou.
"Presa Ibérica - Cañailla - Foie - Fresa"
Os primeiros dias em terra firme são momentos de êxtase para a tripulação. Bebem-se os barris de sherry e festeja-se até o corpo não aguentar mais. O cozinheiro em absoluto delírio, confunde-se e começa a misturar sem ingredientes do Velho e do Novo Mundo. Fruto dessa genialidade etílica nasceram o "Presa Ibérica - Cañailla - Foie - Fresa" ou seja, carne de porco andaluza, foie-gras de ganso e morangos e o "Gamba - Plankton - Coliflor" uma composição de gamba fresca e couve-flor sublimada com um caldo intenso elaborado à base da redução das cabeças do marisco.
"Gamba - Plankton - Coliflor"
Outro prato que surge da reunião América - Europa é a "Patata Gurumelo", uma batatinha assada, tubérculo americano, recheada com cogumelos autóctones dos bosques espanhóis.
E se os discursos fantasiosos que precedem cada prato impressionam, eis que nos chega à mesa um carrinho de show-cooking com peixe fresco. O nosso empregado de mesa com perícia artística cozinhou com o flamejador umas finas fatias de pescada, ao mesmo tempo que nos ia narrando as aventuras e lendas vividas pelos marinheiros colombinos.
Os marinheiros das caravelas, por terem passado muitas semanas a bordo sem fruta fresca começam a padecer de uma estranha doença que lhes inflamava as gengivas, o escorbuto. Juan Quadrado decide usar cítricos na preparação dos pratos, de forma a introduzir mais vitamina C na dieta da tripulação. Nasce o "Merluza Naranja”, um prato de peixe elaborado com pescada e com vários molhos de cor laranja e toque cítrico.
Enquanto os marinheiros rezavam o terço a cada anoitecer, os nativos reuniam-se à volta da fogueira para contar lendas sobre os mares do Caribe e os seus monstros marinhos. Juan Quadrado inspirado nestas narrativas preparou um prato com um tentáculo de polvo, milho assado e alho negro o "Pulpo Agripicante - Ajo Negro - Choclo" para assustar a tripulação.
"Pulpo Agripicante - Ajo Negro - Choclo"
Passados alguns meses em terras estrangeiras, os marinheiros começam a sentir saudades da pátria e dos sabores caseiros. Para animar os seus companheiros, o chef decide criar um guisado de coelho recreando uma receita da sua família. Porém, à falta de coelho, Juan usa carne de Cui, um animal parecido ao Porquinho da Índia, comum na dieta das Américas. O prato "Conejo - Endivia - Anacardo" é um guisado de sabor especial com perna de coelho, endívia assada e puré de caju. Este não foi o meu prato favorito, mas a mesa ao lado estava em absoluto delírio, por isso, não emitirei julgamento.
"Conejo - Endivia - Anacardo"
Termina-se aqui a viagem de sabores salgados e para limpar o palato, o nosso empregado-narrador prepara-nos um cocktail de celebração da viagem ao Velho Mundo. A mistura adocicada incluía essência de flor de sabugueiro e menta, entre outros ingredientes que ficam em segredo de cozinha. Muito refrescante e acertado depois da (duvidosa) experiência do Cui que afinal era Coelho...
Chocolate, o sabor amargo que impressionou Juan Quadrado
Para terminar em êxtase, o cozinheiro das caravelas preparou uma receita com um dos sabores que mais lhe impressionou nessa aventura americana: o chocolate amargo. As diferentes texturas e combinações de chocolate surpreendem-nos e deixam-nos um bom sabor de boca, para recordar com saudade esta verdadeira viagem dos sentidos com mais de 500 anos de história.
Um apontamento interessante e que eu pessoalmente adorei: a conta veio acompanhada de uma caixinha de madeira com conchas de amêijoas recheadas de chocolate líquido e um livro, alimento para a alma, sobre a história da gastronomia no tempo de Colombo. Eu, que sou uma apaixonada da gastronomia e da literatura, naturalmente, delirei...
E para terminar esta crónica gastronómica, sou tentada a citar o nosso grande Fernando Pessoa, o rei dos heterónimos: Valeu a pena ir ao Acanthum? Tudo vale a pena se alma não é pequena...
Para mais informação e reservas;
Restaurante Acanthum
Página web: Http://www.acanthum.com
E-mail: info@acanthum.com
Telefone: (+34) 959245135
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