Arroz de perdição. Noélia em Cabanas de Tavira.
Já aqui falei sobre a minha dificuldade em aceitar que o Noélia e Jerónimo, em Cabanas de Tavira, seja cunhado como O Melhor Restaurante do Mundo. Já expliquei as minhas razões e também já me arrependi das mesmas, porque estamos, sem dúvida perante um restaurante sem igual.
Voltei esta semana e caí, de novo, rendida aos pés da Chef Noélia Jerónimo. Uma mulher com M grande, um talento que nos toca e não nos deixa indiferente.
Terminada a opípara refeição tive que ir beijar as mãos da criadora e dizer-lhe obrigada. Obrigada por quê? Por transformar algo tão corriqueiro como o arroz, num prato digno de Património da Humanidade.
Arroz de Perdição: Risotto de Champanhe e Ostras
Se leu o primeiro post, ou já foi agraciado com uma visita ao Noélia no veraneante passeio marítimo de Cabanas de Tavira, sabe que estamos num restaurante de aparência normal. E por normal, refiro-me a que por fora ou por dentro, estamos perante um sítio que poderia representar os milhares de restaurantes de classe média que existem em Portugal.. é só mais um (mas um dos nossos)... Cá fora, uma esplanada com mesas e cadeiras de plástico, guardasois da Sagres, toalhas de papel, areia da praia, brisa marítima. Lá dentro, o espaço é um pouco mais refinado, mas estamos longe, muitíssimo longe dos restaurantes decorados por algum iluminado de apelido francês. Não, no Noélia tudo é normal, quotidiano, familiar, conhecido. E é precisamente aí, que reside a sua grandeza.
Quem espera encontrar, num lugar normal, uma chef de talentos extraordinários? É com essa surpresa dos sentidos que nos conquista.
A minha visita tinha uma missão definida: provar o risotto de ostras e champanhe. Chinelo no dedo, areia nas pernas e cabelo desgrenhado, apresentei-me sem reserva, à porta do Noélia. Sem reserva, porque tentei ligar e não consegui marcar, por isso, tentei a minha sorte, como qualquer mortal esfomeado que se submete à tortura de esperar meia hora à torreira do sol algarvio. Sim, sou uma dramática. Tive sorte e em 2 minutos estava à sombra com uma coca-cola fresquinha a escorregar pela garganta e 10 minutos depois estava sentada na esplanada com a carta na mão. Foi sorte, mas também lhe pode acontecer a si... não deixe de ir só porque não conseguiu mesa por telefone...
Éramos três: eu, o meu marido e um amigo dele. Pedimos um tártaro de atum e uma tapa de presunto para a entrada. E para o prato principal, três risottos de ostras e champanhe. Tudo bem regado com um Barranco Longo Rosé, algarvio, encorpado e bem fresquinho.
Passemos à dissecação dos pratos. Primeiro, devo avisar que as fotografias são absolutamente fidedignas do que se recebe. Mais uma vez, a deusa da cozinha, Noélia, mantém os pés no chão e escolhe apresentações burguesas, sem toques de rococó ou porções mínimas. Os pratos vêm da cozinha do restaurante como se chegassem da cozinha da nossa mãe. Não há cá porcelanas exclusivas, pratos de diferentes cores e feitios para apresentar criações sibaritas que não cabem na cova de um dente. Aqui não se é Gourmet, é se Gourmand!
As porções são generosas, servidas em pratos democráticos ou em tachos de alumínio. Assim, curto e grosso. Simples e maravilhoso. E esta simplicidade conquista. Conquista ao rico e ao pobre, ao néscio ou ao génio, ao distraído na cozinha ou ao grande Chef Michelin.... ou já não contei por aqui que o grande da nossa gastronomia, Hans Neuner, vem ao Noélia nos dias livres? Nem só de alta-gastronomia se pode alimentar o corpo e a alma.
O tártaro
Poesia de atum cortado em dados com a faca, marinado em soja e gengibre, polvilhado com sésamo e sob uma cama de abacate e coentros. Perfeito.
A tapa de presunto
Era uma receita espanhola, até que a Noélia se apoderou dela e mandou os nossos hermanos de volta a Castela. Aqui encontramos pão alentejano bem tostado com uma rapsódia de tomate, ervas e alho, azeite virgem português e finas lâminas de presunto lusitano, servida com um acento de salmorejo (alho, tomate, pão, pepino, pimento, azeite) que pede comê-lo com a ponta dos dedos. Esta tapa poderia ser um manifesto de independência escrito pela descendente da Padeira de Aljubarrota, mas escolheu ser um hino à Irmandade Ibérica.
O risotto
A razão da visita. Conduzimos uma centena de quilómetros para provar uma das especialidades da Noélia. Uma criação que nem sempre aparece na carta, porque nem sempre os ingredientes estão disponíveis. Não vou dar a receita, porque não a sei, nem me atrevo a perguntar. A fórmula da artista deve manter-se em segredo. Mas posso revelar o que os meus sentidos detectaram. Estamos perante um prato de arroz inesquecível. É daquelas coisas que justifica vir de Lisboa almoçar e voltar para cima no mesmo dia. E não estou a exagerar.
Grãos de arroz grossos envoltos num molho meloso de champanhe e com bocadinhos de cebola translúcida e salpicos de coentros. Nesse prato de dolce far niente, os grãos abraçam-se sem pudor, num molho glorioso e amarelo com um toque de acidez final. Por cima do arroz, a cúspide dos deuses marinhos. Ostras fresquíssimas da Ria Formosa cozinhadas com o calor desse arroz fumegante, caviar negro, algas salicórnia e o toque de génio: uma colherada de ali-oli, maionese de alho a escorrer pecado. Este é o melhor risotto da minha vida. Um arroz de perdição que nos leva ao céu desde a primeira garfada.
O preço? 35 euros por pessoa por uma experiência memorável. Quem conhece um restaurante melhor que este? Fica aqui o desafio...
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