Chef Rui Paula. Restaurante DOC, o referencial gastronómico do Douro.
Advertência. A leitura deste post poderá dar-lhe uma vontade imediata de agarrar no carro e rumar em direção ao Douro, para provar o delicioso menu trasmontano-duriense do Chef Rui Paula. Existem outros efeitos secundários possíveis, como a salivação intensa e aumento de fome existencial por viajar ao mosaico das paisagens do Douro Vinhateiro, as colinas em xisto e granito, os socalcos e os vinhedos, e esse perfume inesquecível da uva acabada de pisar. O Avenida Chique foi provar a oferta sibarita do DOC, o restaurante que é hoje, a maior referencia gastronómica da região.
O restaurante DOC junto às margens do Douro.
Borboletas no estômago
Não costumo ficar nervosa antes das entrevistas, mas enquanto conduzia a caminho do DOC, pela cénica estrada N-222 que contorna a margem sul do rio Douro entre vinhas e espelho de água, não podia deixar de sentir um nervosinho na barriga. Ia encontrar-me com o mediático Chef Rui Paula, no restaurante DOC, em Folgosa no vale do Alto Douro.
Não era a primeira vez que ia tratar com o chef e membro do júri “Master Chef Portugal”, e verdade seja dita, apesar da frontalidade com que trata os concorrentes do programa, em pessoa é um ser humano de trato fácil, simpático, acessível e amável. Creio que meus nervos vêm da admiração. Porque reconheço no Chef Rui Paula mais do que um chef, um grande empresário, uma pessoa com visão, determinada, constante, perseverante, que acredita na qualidade e no bem-fazer como ingredientes essenciais para um bom projeto gastronómico.
Há poucos “Rui Paulas” em Portugal. Poucos “restaurateurs” que sejam donos dos seus próprios restaurantes. Que arquem nos ombros com as despesas e as dívidas, que sejam responsáveis economicamente pelas equipas de trabalho, pela contabilidade, pela investigação e pelo desenvolvimento. Contam-se pelos dedos, os chefs-empresários. Se olharmos para Espanha ou França, a história é outra. Os grandes chefs têm quase todos um restaurante da sua propriedade. Em Portugal, o caso é diferente. Os chefs mediáticos e os estrelados pelas guias Michelin ou Gault Millau costumam trabalhar por conta de um hotel ou de um grupo de inversores.
Detalhes da arquitetura e das palafitas que suportam o edifício.
Rui Paula é dono e senhor, para o bem e para o mal, de três restaurantes em Portugal. Todos no Norte. Todos um sucesso. O mais consolidado é o DOC, que existe há mais de nove anos. Depois veio o DOP no Porto, mantendo a sua cozinha de autor mas com propostas mais refinadas. E o seu “bebé mais recente” como ele próprio o apelida é o restaurante Casa de Chá da Boa Nova, na Leça da Palmeira num edifício de Siza Vieira junto ao mar. Este último projeto aposta na alta-gastronomia e nas técnicas internacionais de cozinha, fruto dos muitos anos de experiência do Chef e dos vários estágios realizados por ele e pela sua equipa em restaurantes de prestígio a nível mundial. O último estágio foi no El Celler de Can Roca, considerado o “melhor restaurante do mundo”. Ao todo, Rui Paula é responsável por mais de 60 postos de trabalhos. Nos últimos anos Chef aventurou-se também com um projeto no Brasil, o restaurante Recife na cidade de São Paulo e com a consultoria gastronómica do Hotel Vidago Palace.
A agenda do Chef é mirabolante “Semana de trabalho? Eu não tenho disso, não há fins de semana, nem férias. Vou rodando entre os restaurantes, dois dias aqui, dois acolá, quatro dias no Casa de Chá, porque está a arrancar e precisa mais de mim” explica com um fogo especial no olhar.
Deixou de chover e viemos sentar-nos cá fora, no sofá do terraço do DOC, com vistas para as águas do Douro e para as encostas de xisto. Servem-nos um copo de champanhe, enquanto as perguntas e as repostas vão fluindo como as correntes no rio. O Chef Rui Paula é de conversa fácil, ou não fosse um chef mediático, habituado a estar sob as luzes da ribalta e a centenas de entrevistas. Mostra-se aberto a todas as perguntas, como se nos conhecêssemos há anos. Conta-me confidências, embora se apresse a dizer “isso não escrevas, fica só entre nós”. Conquista com um sorriso franco, dentes brancos que contrastam com a pele ainda morena do sol do Verão, enverga calças de sarja verde-esperança e uma casaca de Chef com o seu nome bordado minuciosamente.
À conversa com o Chef Rui Paula.
O Chef Rui Paula cursou a universidade de gastronomia da vida. Estamos perante um “self-made-man” na mais profunda acepção da palavra. Um autodidata que não frequentou Escolas Internacionais de Cozinha, mas que aprendeu a pulso firme das melhores cozinheiras do mundo: a avó e a mãe. “Com oito anos a minha avó exigia que eu cortasse as torradas todas iguais, com precisão e minúcia, para que entrassem perfeitamente no braseiro. Vivíamos num casa farta, e todos os dias ajudava-a a cozinhar para mais de 20 a 30 pessoas. Com ela, e desde cedo, aprendi a importância da excelência até nas mais simples tarefas.” recorda. A cozinha matriarcal ainda se reconhece na alma gastronómica do Chef, em especial na recuperação quase obsessiva dos sabores tradicionais. Claro que nos últimos anos, a cozinha de Rui Paula tem vindo a desenvolver-se continuamente, em concreto a nível de técnicas, concepções e empratamentos que seguem as tendências internacionais. Porém, por mais futurista que seja a apresentação do prato, ao fecharmos os olhos somos levados para o terreno das memórias sensoriais: a feijoada, a caldeirada, o arroz de polvo com filetes feito pela avó em dias de festa ou ainda o leitão da Bairrada. Pratos que condensam a alma gastronómica portuguesa, apresentados com as últimas inovações.
“Há pratos que demoram meses a desenvolver. Trabalho sempre com a minha equipa, juntamo-nos à mesa e conversamos, discutimos, partilhamos ideias” explica Rui Paula. Mas a inspiração para a criação vem também da revisitação das suas próprias receitas e das inúmeras viagens que realiza “aprendo muito nas viagens, especialmente técnicas e formas de conceber um prato. Depois penso nos sabores da cozinha portuguesa e tento adaptar as técnicas contemporâneas aos nossos sabores. Foi assim que nasceu a minha lula dominó. Estava em França e alguém veio contar-me de um prato com este jogo de cores. Aquilo ficou-me a dar voltas na cabeça e quando cheguei a Portugal pensei em recuperar a lula e o sabor do arroz de chocos. Demorámos três meses a encontrar a técnica perfeita. Hoje é, uma obra-prima, admirada internacionalmente” revela o Chef.
O interior do restaurante ao final da tarde.
DOC: Degustação de Origem Certificada
O DOC tem um nome genial. Parte da analogia vínica “Denominação de Origem Controlada” e como um jogo de palavras assume-se como uma “Degustação de Origem Certificada”. Não poderia ser de outra forma, pois o DOC é, desde a sua abertura em 2007, o grande referencial gastronómico da região. Aliás, da mesma forma que não se pode ir “a Roma sem deixar de ver o Papa”, para quem visita o Douro, a visita ao DOC é absolutamente incontornável.
Para além da cozinha, é também necessário referir a localização estratégica do restaurante na margem sul do Douro, mais concretamente na N-222 a estrada mais “panorâmica do mundo” e que liga a Régua ao Pinhão. Para lá chegar sem erro, basta procurar no GPS as coordenadas para a aldeia de Folgosa, no concelho de Armamar.
O restaurante ocupa um edifício moderno, de linhas minimalistas em aço e vidro, construído sobre palafitas nas águas do rio, uma obra assinada pelo arquiteto Miguel Saraiva. Um grande deck de madeira aberto ao Douro oferece vistas panorâmicas para quem visita o restaurante para almoçar. Nas noites de Verão, pode jantar-se al fresco junto às margens e admirar, em silêncio, as colinas, os vinhedos e as aldeias que compõem a paisagem duriense. Quando o tempo começa a arrefecer, a solução é jantar no espaço interior. Aí domina um ambiente intimista, as luzes trémulas, a decoração em madeira cálida que adiciona um toque de calor às modernas vidraças. O edifício possui ainda um cais para barcos, estacionamento e uma garrafeira com mais de 750 referências. A coleção de vinhos é excecional, ou não fosse o DOC um restaurante de marcada personalidade vínica. Grande parte das referências da carta de vinhos tem proveniência do Douro, porém existiu o cuidado de incluir regiões limítrofes que partilham história e tradições durienses, como os vinhos verdes e os vinhos do Dão, e várias opções de champanhe franceses.
Pormenores da decoração interior.
Menu de Excelência
Depois de mais de uma hora de conversa, passámos à mesa. O Chef deixou-nos e foi para a cozinha supervisionar pessoalmente todos os pratos. A escolha recaiu sobre um menu de degustação com acompanhamento de vinhos. A mesa estava posta com minúcia com talheres “Hepp exclusiv” colocados pela luva branca do empregado de mesa bem treinado, pães caseiros, um azeite do Carmo do Douro e um Vinagre Balsâmico envelhecido. O escanção do DOC, Gil Pinto, serviu um “Alvarinho Contacto de Anselmo Mendes de 2014” da região de Melgaço, com surpreendentes notas de alperce e compota de abóbora.
O desfile gastronómico começou com uma amuse-bouche composta por um “cone de tártaro de salmão” e um “mini-hamburger em pão de brioche com pasta de leitão”. Nas duas mini propostas, uma de mar e a outra de terra, o Chef propõe-nos um jogo simples entre o doce o salgado, mas leva esse dueto de contrastes a outro nível na entrada. Veio uma “enguia fumada” com tonalidades de sabor, desde o crocante do caramelo de milho, às reduções de beterraba em vinho tinto, o salgado do presunto de pata negra, doce vinagreta de laranja e caviar de beterraba. E se nesta “enguia” o empratamento é vistoso e bonito, é em boca que explodem os fogos artificiais, entre o fumado, o salgado e o doce da laranja e da beterraba.
Ainda não recuperados das sensações arrebatadoras do prato anterior, o sommelier trouxe uma nota mais pacífica, servindo o vinho branco duriense Doc “Croocked Vines” de 2013, com sabor mineral e cítrico.
Chegou a criação de peixe, “a caldeirada”. Quem pede este prato não se imagina a apresentação futurista, com espumas, creme, caviar de pimentos e um falso tagliatelli de lula. Cria-se uma perplexidade inicial que é rapidamente derrotada na primeira garfada. Porque ali vive a mais pura essência do prato atlântico. Encontram-se escondidos pela espuma de peixe um filete de robalo, calamares, cavala fumada e lavagante. O creme da caldeirada faz-nos fechar os olhos e recuar às nossas memórias mais queridas. Um prato muito bem conseguido, que me fez voltar ao restaurante, dois dias depois, para repetir...
No capítulo de vinhos faz-se agora a incursão pelos tintos. Gil Pinto serve-nos um encorpado “Quinta dos Frades, Vinhas Velhas”, Douro, 2009, com 18 meses de barrica em carvalho francês. Em boca notam-se os frutos vermelhos e algo de chocolate negro, embora o final não seja muito prolongado. Curiosa esta visita vínica pela Quinta dos Frades, que se encontra a poucos metros do restaurante.
Chegou depois uma simpatia do Chef. Uma vieira caramelizada com caviar beluga, esfera de óleo de limão e couve-flor em três texturas, um creme suave, o crocante da couve-flor tostada na sertã e uma florette de couve-flor.
A todo o momento, o serviço de sala foi realizado com competência e simpatia por Sílvia, Joel e Natália, não só na nossa mesa, mas em todas elas, coordenando os tempos da cozinha e do comensal.
Veio finalmente o grande prato de carne, uma criação assinada por Rui Paula há já vários anos, e que tem vindo a reconstruir-se e a evoluir até ao presente estado de perfeição. Estou a falar de um “Leitão com batata de leitão e funcho assado”. Sou bastante crítica em relação ao sabor e à textura de um leitão, afinal, venho de Coimbra e cresci com o Leitão da Bairrada bem pertinho. Por isso é duplamente enriquecedor quando provo uma revisitação do Leitão da Bairrada que traz não só o sabor exato que guardo na memória, bem como a textura mais desejada. Neste caso encontramos um triângulo fino de carne, sem osso, com a pele perfeitamente tostada, um véu quase impercetível de gordura e o sabor pleno e suculento da carne de porco. A carne é sublimada com uma redução espessa com sabor a pimenta. A batata de leitão é uma profusão de lâminas de batata, carne e especiarias, onde sobrevive o sabor a cominhos.
O escanção Gil Pinto natural de Resende, trouxe-nos dois Portos da Casa Fonseca para desfrutar do adágio das sobremesas, um doce “Porto Fonseca aged Tawny com 20 anos” e um mais encorpado, menos doce e mais complexo “Porto Fonseca Guimaraens Vintage de 2008”.
A primeira sobremesa foi uma sopa leve de frutos vermelhos, compota de cenoura e uma fresca infusão de folha de eucalipto. Depois veio uma bola surpresa de cacau branco recheada de sumo de frutos vermelhos, com toque de petazetas. Um apontamento simpático com explosões a dois tempos, primeiro a bola de cacau que explode na boca revelando o sumo agridoce dos frutos e depois a explosão final das petazetas que ficam a fazer cócegas na lingua.
A grande sobremesa assinada pelo Chef Pasteleiro Sérgio em conjunto com o Chef Rui Paula foi uma composição de tarte de chocolate, crocante de caramelo, falso Ferrero Rocher e gelado de café. Cabe destacar a bela decoração da tarte com chuva de pó de ouro e a riqueza do seu interior com um dueto de mousses de chocolate de leite e de nata. Embora seja intolerante à lactose, não fui capaz de me manter pela “colher de prova” e tive que degustar esta deliciosa tarte até ao fim. Com os chás e os cafés vieram alguns “petit-four” compostos por macarrão de framboesa, bombons de azeite, cocos e telha de amêndoa.
Considerações finais.
Estamos perante um projeto gastronómico consolidado que consegue captar a essência da cozinha portuguesa apresentando-a com novas roupagens. Apesar das técnicas contemporâneas, existe na cozinha do Chef Rui Paula a preocupação pelo resgate dos sabores tradicionais e a homenagem ao património gastronómico do nosso país. O DOC é hoje o grande embaixador gastronómico da região, uma visita indispensável para o apreciador das boas experiências à mesa. Graças à cuidada carta de vinhos, o restaurante apresenta-se também como uma sala de provas e montra do que melhor se produz no Alto Douro. E se falta alguma coisa a este projeto para ser absolutamente perfeito, é mesmo a estrela Michelin...
Fotografia do interior do restaurante DOC: um espaço intimista e cosmopolita.
Luzes baixas, predomínio das madeiras e das linhas arquitetónicas interiores minimalistas.
O amuse-bouche: Cone de salmão e Mini-hamburger em pão brioche com pasta de leitão.
Enguia. Parece uma pintura?
Vieira e caviar com couve flor em três texturas: o creme, o crocante e a florette.
A Caldeirada. Todos os sabores do prato típico português reunidos numa criação futurista.
Leitão assado, um dos pratos assinatura do Chef Rui Paula.
A carne vem espalmada num triângulo de puro prazer.
A pele crocante, a carne macia, um mínimo de gordura.
Colher surpresa de frutos vermelhos e petazetas. Um acontecimento de limpa-palato, que explode na boca e deixa um after de fogos artificiais.
Sopa de eucalipto com macedónia de frutos vermelhos. Proposta fresca e com poucas calorias.
A grande sobremesa. Como se estivéssemos perante o grande concerto dos sentidos.
Cada garfada uma sensação e de sabores conjugados à perfeição.
Tarte de Chocolate, Ferrero Rocher, Crocante de Caramelo e Gelado de Canela.
Tive que tirar um fotografia de detalhe à tarte de chocolate para que se aprecie bem o efeito de chuva de pó de ouro. No interior esperava um dueto de mousses de nata e chocolate de leite, que sem serem demasiado doces proporcionam um mergulho sensorial no mundo do chocolate.
Mesmo sendo alérgica à lactose, não foi possível resistir a esta maravilha...
Nota: todas as fotografias foram tiradas com o Iphone 6, sem uso de filtros, retoques ou iluminação especial. As fotografias de estudio são mais profissionais e mais bonitas, mas acredito que uma fotografia tirada à mesa, no momento da degustação é sempre mais verdadeira e mostra a experiência real do comensal. Nem sempre as condições de luz são as melhores, os restaurantes têm quase sempre uma iluminação intimista, o que dificulta as fotografias. Porém, estas são narrativas reais.
Fotografias fornecidas pelo DOC: